O beijo
Ontem eu cruzava um abismo quando achei um beijo caído sobre a ponte em que eu passava. Achei estranho um beijo largado ali, quem sabe alguém o perdera, quem sabe alguém o jogara fora. Estava no meio da ponte, lá nas alturas. Abaixei-me e apanhei aquele beijo. Há quanto tempo estaria ali? Estaria vivo ainda?
Ventava forte, ameaçava chuva e ainda me faltavam alguns metros para atingir o outro lado. Eu vinha de longa caminhada com uma mochila pesada nas costas que, naquela parada, pus logo no chão. O mau tempo me fez apressar as passadas de onde eu vinha e aquele momento sobre a ponte pareceu-me providencial, pois sentia mais leve as minhas costas enquanto estava parado com aquele beijo nas mãos.
Debrucei-me para ver as águas fortes em seu curso urgente. Olhei na palma de minha mão aquele beijo que sequer se movia, e pensei que a única coisa a fazer era atirá-lo lá embaixo até vê-lo sumir nas espumas que se enfumaçavam entre as pedras. Olhei-o uma última vez mas antes que eu o fizesse, um vento forte arrancou-o de minha mão.
A queda era grande e eu, estático, via o seu mergulho sem volta.
O estrondo das águas em fúria fez-me ter tamanho remorso e vê-lo ainda em queda, tão solitário, não pude crer na minha intenção desumana. A única coisa que me restava era mergulhar atrás dele e recuperá-lo. Então lancei-me das alturas naquela imensidão no mesmo instante em que o céu rasgou-se em grossa tempestade.
Lá em cima minha mochila abandonada sobre a ponte, encharcava-se. Lá embaixo meu corpo encontrava as rochas mas nunca mais o beijo.
Ali permaneci.
O beijo, que apenas dormia, saiu na carona das águas rumo aos lábios acordados.