A vela
Luz da vela e sombras que gesticulam na parede. Formas que se evaporam no cimento inerte, vultos que dançam na tela dissimulada. A fumaça escoa manchando o ar. Cheiro de fogo e fumaça com cera derretida. Luz impaciente, debate-se presa ao pavio, deseja sua vida e estar viva na aurora. Por isso se gesticula tentando estar livre do breve destino que se esgota no pires.
O pires, alheio e anônimo na penumbra do quarto, ampara a vela e receberá o clamor da chama no instante derradeiro, em que desfar-se-ão todas as sombras – recentes tentáculos da escuridão.
A cera impregnada na porcelana se acumula enquanto a chama clareia.
Claridade discreta e duvidosa.
Lacrimeja a vela. Chora, chora porquanto incendeia. Luz da vela que luta pela eternidade. O pavio, carbonizado e conformado, não lhe dá trégua. Aprisiona a pobre chama.
E a vela se derrama sobre si própria enquanto pingam estas palavras de meus dedos.
Luminosidade frágil que ilumina esta página, a vela ataca-me com sua luz amarela de intensidade reticente. Sou cúmplice de seu inevitável destino. Do contrário ela ainda estaria na gaveta, pálida e fria. Mas dela eu preciso para escrever estas linhas na escuridão noturna.
Aqui, sozinho neste quarto, na companhia vaga das sombras, vago os olhos na chama e sua cercania. Vejo o contorno do pires e sua superfície onde quase lhe toca a chama. Ou melhor, onde já lhe toca a chama. E agora surge a fumaça mais negra e densa, e seu cheiro que avança me condena neste instante derradeiro. Observo a chama. Quase chama.
Tudo se mistura em total anarquia, tal como o grito – língua, boca e garganta. Lá estão unidos no seu espanto a diminuta vela, o pavio, a chama e a porcelana. A cera agora parece um tumor.
E a chama…
Quase que…
Quase…
Agonizam todas as sombras, agonizam todas as sombras, agonizam todas as sombras.
Nada vejo.